segunda-feira, 10 de maio de 2010

Mais um sábado no curriculo

Passadas as novidades do primeiro mês, em que cada final de semana tinha uma novidade, sabíamos que o final de semana não seria um evento, mesmo porque era véspera de dia das Mães no Brasil e continuamos com os meios de comunicação muito limitados, o que nos deixa ainda mais ansiosos.

Trabalhamos no sábado como de costume e voltamos conversando no ônibus, combinando um almoço fora do hotel, para quebrar a rotina. O sol estava quente e o céu limpo anunciava mais uma tarde "daquelas" em Tete. Paramos na fila da ponte e decidimos não descer justamente porque, naquele sol, ficaríamos rapidamente cansados e torrados durante a travessia com mochilas e bolsas.

Ficamos jogando conversa fora e observando o verdadeiro comércio formado ao longo da “bicha” ou fila da ponte. Vende-se de tudo – amendoim cru, cozido, torrado, biscoitos, refrescos (como chamam refrigerante), ovos cozidos e água. Água esta, torneiral, cuidadosamente envasada nas embalagens de água mineral que as crianças procuram pela rua afora e trocam com os vendedores, na sua maioria mulheres e crianças, por moedas de 500, ou 50 centavos de metical. A moeda aqui teve três zeros cortados a pouco tempo e não raro ouvimos alguém dizer que alguma coisa custa 500 ou 1000, quando na verdade é 1 ou ,50 de Metical. É assim: Eles recolhem as embalagens, e, sem cerimônia as enchem numa torneira próxima. Daí então as acondicionam em caixas térmicas ou coolers com gelo e vendem a cada interessado por 1MZN – equivalente a 0.05 centavos de real. Muitos moradores locais compram e bebem por ali mesmo, refrescando-se do calor infernal. As embalagens vazias vão sendo colocadas numa bacia ao lado até que o estoque chegue ao mínimo e vão ser novamente cheias. Um dia vi um rapaz tomando a água e olhando dentro da garrafa. Depois do segundo gole reclamou com a menina vendedora apontando para algum objeto não identificado e ganhou outra novinha, a qual tomou de uma ou duas goladas no máximo. Outra modalidade de água à venda é em galões amarelos na beira do canteiro que circunda a ponte. Ficam expostos com um único copo duplo por cima e a uma simples aproximação do cliente, a vendedora abastece o copo. Cada moeda de 1 MZN dá direito a 2 copos cheios da água e uma outra garrafa ao lado, também com água, porém, menos própria para o consumo, é utilizada ao final para dar aquela "lavadinha" no copo, que, naturalmente, servirá o próximo cliente daqui a pouco.

Fora isso, vimos crianças se divertindo brincando umas com as outras e vendendo seus refrescos em coolers coloridos. Um colega que queria uma cerveja chamou uma criança com o cooler, mas ele só tinha refrescos. Seu nome era Genito e muito solícito, ofereceu-se para buscar uma na "venda” do outro lado. Disse um preço, mais do que deveria custar, mas ainda menos do que nos restaurantes da cidade e foi correndo, deixando o cooler em nossa responsabilidade ao lado da janela do machimbombo.

Minutos depois voltou correndo com duas cervejas geladas na mão, para nosso espanto, afinal, o colega só pedira e dera dinheiro para uma. Perguntou a ele então o por que das duas cervejas, e ele, apontando pra mim, disse sorrindo: Uma é para ela, mas vai ter que dar os 35, referindo-se ao valor cobrado pela cerveja. Caímos na risada com a presença de espírito do menino e fiquei com a cerveja, paguei por ela deixando sobrar uma beiradinha para valer a correria dele no sol escaldante e o feeling empreendedor que, percebeu no meu sorriso que eu não negaria de pagá-lo caso trouxesse mais de uma cerveja.

Ainda ficamos na fila tempo suficiente para comprar 5 belas maçãs na mão de outro vendedor, procurar amendoim torrado para acompanhar a cerveja – não tinha - e fotografar o Genito, que, sempre sagaz perguntou-me: Vai me trazer a foto no domingo? Infelimente não teria como fazê-lo, mas prometi a ele levá-la impressa na segunda a noite, no mesmo local.

Vimos também uma família de porcos, ali, bem ao lado, “pastando” ou procurando por comida, em meio a quem quisesse passar por perto.

Finalmente a ponte abriu e seguimos nosso caminho.

Já cansados da espera e sem tantas opções na cidade, decidimos por almoçar o bufe do hotel mesmo, fraco para nosso paladar mas verdadeiro banquete para a esmagadora maioria da população local de Tete que, por mês não recebe nem o correspondente por uma refeição com refrigerante – 500 MZN.

A tarde passeei pela cidade, deserta e de comércio todo fechado, como sempre acontece nos sábados, tudo fecha ao meio dia.
Jantamos no Italiano, ali mesmo perto do Hotel e depois fizemos festa do pijama, cada um no seu quarto, claro!


Esse é o Genito, cheio de pose!

Bonitão!

Família de porcos lá no meio...

Comércio de água...
Comércio ao longo da fila...


Jantar no Italiano...

Eu e o Bruno,

Pai, essa vou levar para tomarmos juntos!


Turma reunida!

O Domingo, dia das Mães!

Foi meu primeiro dia das Mães sem a minha mãe por perto.


Acordei muito cedo com o barulhão do gerador entrando no circuito para suprir a falta de energia, inseparável amiga dos domingos. Virei de um lado para o outro na cama e logo voltei a dormir. Mais tarde fui ao restaurante tomar meu café da manhã, "pequeno almoço" ou "mata bicho", como chamam aqui.

Encontrei uma colega moçambicana que nos disse, por influência de uma TV brasileira muito presente no país ultimamente, inlusive com inúmeros programas de temática religiosa fortíssima, Moçambique vem comemorando já a alguns anos, o dia das mães no primeiro e segundo domingos de Maio. Interessante como a mídia brasileira influencia outras culturas...

Na hora do almoço combinamos de ir ao Italiano de novo. Enquanto esperávamos pelos colegas do lado de fora do hall do Hotel um pequeno time de crianças se aproximou para pedir dinheiro e comida.

Infelizmente, de uns tempos para cá a esmolagem tem sido uma constante em Tete. O tempo todo crianças, mulheres cegas acompanhadas de crianças, idosos e deficientes pedem, pedem e pedem. Do Hotel até a única padaria da cidade é um quarteirão de distância e nessa breve caminhada cheguei a contar cerca de 10 pedidos, todos entoados quase em forma de um canto triste, de cortar o coração: - Mãaaaaaae, foooooooome! Fooooome mãe, dinheeeeeiroooo! Normalmente falamos sem olhar muito para o lado deles, só dizemos rapidamente que não temos e seguimos caminho, mas eles não se dão por vencidos e andam atrás cantando o pedido até que na direção contrária venha outro transeunte, estrangeiro, claro, para virarem a cantoria para o lado oposto, mas logo vem o próximo e o próximo e mais um…

É impossível não parar para pensar que é fome mesmo, que a carência é real e absoluta. Impossível não ficar com o coração partido, mas ao mesmo tempo, se olharmos na direção deles o que era 3 viram 6, 9, 12, rapidamente, impressionante. E teríamos que ter máquina de fazer dinheiro para dar conta de suprir tanta falta. Meu Deus! É muito complicado e ainda pensar que o governo não consegue suprir as necessidades mais elementares.

Corri lá no quarto e peguei um pacote de balas ou pastilhas - nome local, e, rapidinho eles se alvoraçaram, chegaram mais uns tantos. Pedi que fizessem uma bicha - fila e do jeito deles se amontoavam, enfileirados de corpos, mas com as mãos todas amontoadas diante de mim para garantirem as pastilhas, rsrsrs, foi uma festa! Mal saíam da bicha com as balas na mão voltavam novamente, dessa vez com a outra mãozinha, suuuja, mal cuidada, nem por isso menos ávidas...

Distribuí todo o pacote e fui almoçar mais feliz.

No restaurante, sem energia, só pudemos pedir massas. Aqui é comum só existirem fogões elétricos porque é difícil o acesso ao gás de cozinha. Há quem diga que em determinada época do ano ele simplesmente some das distribuidoras. Com isso, quem pode ter os dois leva vantagem, quem não pode vai se arranjando como dá. E esta máxima só se aplica a uma pequena parcela da população - a maioria cozinha na lenha mesmo. Tem outro porém, quando falta energia, falta também água, porque aqui não se usam caixas de água por gravidade, apenas reservatórios acionados por bombas, dependentes de energia elétrica para puxar água para o uso. Descobri isso logo que cheguei - Fui ao banheiro lavar as mãos e um último filete de água do cano me recebeu - paciência - preferi não pensar que a falta d´água também estava atingindo a cozinha!!!

Foi um bom almoço. Conversamos entre nós e recebemos do Fabrício uma homenagem pelo dia das Mães que gostamos muito e dedicamos às nossas, uma bela garrafa de um bom vinho sul africano, bem gostoso!

Voltamos para casa, mas antes, fui ao Mercado de frutas, na rua mesmo e comprei bananas. Ao chegar no hotel fui novamente cercada por mais crianças pedindo dinheiro. Diante da minha negativa, vendo a sacola de bananas pediram alegando fome. Eu lhes disse que as bananas estavam verdes, mas mesmo assim abocanharam-nas e comeram ali mesmo, sem nem fazer cara feia, tinham que ver. A gente, normalmente ressabiado em dar as coisas no Brasil, onde nos acostumamos aos pedintes inclusive recusando o que damos, tomamos um choque atrás do outro aqui... Eu, pelo menos, revejo os meus (pré)conceitos a todo o momento - até me envergonho muitas vezes quando me pego tendo pensamentos do tipo - ah, não vou dar porque vão ficar viciados... Que remédio há para tanta miséria senão o assistencialismo imediato? Penso que só depois de matar a fome imediata poderemos pensar em trabalhar algo de mais longo prazo. Infelimente, tendemos a adiar nossa ajuda colocando sempre a culpa no governo ou nos refugiando nos velhos conceitos de que dar dinheiro é ruim ou vou dar no Natal uma cesta básica...

A fome é urgente! E mata!

As crianças tem feridas brancas nas cabeças e boca, sinal de desnutrição. São famintas, mesmo com aquelas carinhas alegres e insistência em pedir... Não pedem para acumular, é para comer mesmo! Não estão pedindo por profissão, mas por fome, pura e simples fome.

Há os que dizem que vai virar profissão, e sei que o tema é complexo, nem quero me estender muito, mas com a falta de opção que vemos aqui algo de muito profundo, abrangente e sério precisa ser feito...

Bom, sem a pretensão de discursar ou levantar bandeiras vou tentar fazer a minha parte, mesmo que aos poucos...

Pedi para tirar fotos deles comendo e adoraram, ficaram me rodeando e eu que já não gosto comecei uma verdadeira sessão. Fizeram pose de luta, dançaram, pularam e inventaram altas poses... Claro, depois de cada clique eu tinha que virar a máquina e mostrar a eles a foto, embolados em cima de mim aos risos e comentários, covardia comigo, em Yungué - língua local falada pela maioria da população de Tete.

Um deles, Tomás, fala bem o português e virava mexia traduzia aos outros algum pedido ou fala minha.

Ficamos bastante tempo nesta farra e quando me preparava para subir veio o Bruno com um pacotes de biscoitos - aí a farra recomeçou... Muito engraçado! Bicha de novo, alegria alegria e a meninada ficou numa satisfação danada.

A noite, já bem tarde para criança estar na rua, encontramos de novo o Tomás, ainda na porta do Hotel.

Batemos o seguinte papo:

Nós - Tomás, você aqui até tarde, porque não vai para casa?
Ele - Estou a esperar pelo meu irmão luiz que foi lá em cima com um amigo.
Nós - Quem é o Luís?
Ele - Aquele mais pequeno que estava aqui hoje mais cedo.
Nós -Ah, sim! Lembro-me. Onde moram?
Ele - Em Matundo (fica do outro lado da ponte a mais de 1km)
Nós - Nossa! É longe! E está tarde...
Ele - Já estou a ir...
Nós - E o banho Tomás, quando vai tomar?
Ele - (risos) Amanhã! (Com a cara mais sapeca do mundo)
Nós - No rio?
Ele - Não! Há crocodilos no rio... Em casa mesmo!
Nós -Ah, bem! E sua mãe não vai brigar com você por dormir sujo?
Ele - Não tenho mãe, ela morreu
Nós - Fiquei em silêncio, entalada... Entreolhamo-nos (Eu, Brunos e Adriano)
Nós -Seu pai trabalha?
Ele - Não, meu pai não faz nada
Nós - E você recebe muito aqui?
Ele - 30. 40, 20, nada... (Cerca de um real e pouco por dia)
Nós - E como usa o dinheiro?
Ele - Para comprar farinha
Nós - E come farinha com o quê?
Ele - Com quiabo, abóbora, o que tiver...
Eu - Entalei de novo...
Nós - Você estuda?
Ele - Sim.
Nós - Onde? - Ele disse mas não compreendemos, mesmo repetindo...
Nós - Está em que fase?
Ele- Terceira
Nós - E o que quer ser quando crescer? Depois de repetir 3 vezes, entendemos...
Ele - Doutore!
Nós - Ah, muito bem! Estude sim, muito bem Tomás, é assim que se fala!
Ele - Apenas sorriu timidamente...
Nós - Boa noite Tomás, vamos dormir...
Ao som da fuzarca de uma alegre carreata que anunciava festivamente o título do Benfica, time português da maioria dos torcedores daqui, subimos calados...

Corri no quarto e fiz uma sacolinha com duas mexericas, um salgadinho e castanhas e desci correndo para apanhá-lo. Logo que saí do hotel e caminhei alguns passos ele veio sorridente ao meu encontro. Recebeu a sacola sorrindo e prometeu dividir com o irmão...

Na África é assim...

 
Os primeiros - ganharam balas - (pastilhas)

Eles de novo, posando para a foto!

No restaurante, vinho de presente!

Homenagem à Mami...

Os meninos das bananas

Posando para a foto!















Esse é o Tomás!

Luiz, irmão do Tomás
Bruno distribuindo os biscoitos e a bicha... Reparem no sorriso do empregado do hotel, do vidro!
Todos com seus biscoitos!
Agradecendo...
Eu adorei esse menino...
E esse... (Tomás)
Esse também, rs...Joshua...
Altino...
Luiz...